sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Funk Carioca: A sua função.

Muitas discussões acadêmicas hoje em dia se preocupam em definir o que é e o que não é arte, eu particularmente acho essa uma discussão desnecessária. Arte pra mim é tudo ou é nada (principalmente na era da reprodutibilidade técnica), então não existe utilidade em delimitar o que é considerado arte ou não. O conceito de “artista” tem sua origem junto com o conceito de “intelectual”, tanto os artistas quantos os intelectuais ocupam um lugar de status na sociedade, originando uma hierarquia relacionada à divisão de trabalho. Essas pessoas que supostamente tem o “dom” da arte ou do intelecto avançado ocupam cargos de prestígio deixando o trabalho braçal para os “menos agraciados”. Uma forma simples de enxergar como esses conceitos não são tão naturais é olhar para os primórdios das sociedades, os indígenas por exemplo não distinguiam arte de não-arte, um cocá usado por um pajé não é uma obra de arte e sim um objeto com sua função ritualística. É importante tratar esses conceitos como convenções criadas e inventadas que precisam ser desnaturalizadas do nosso pensamento, coisa que faz muita gente que se auto intitula intelectual torcer o nariz. Uma discussão útil e válida de aprofundamento seriam as funções e objetivos esperados das diferentes expressões estéticas

Se referindo agora ao Funk carioca, nós vemos na postagem anterior que o seu desenvolvimento foi sempre relacionado a bailes e festas, ou seja, é por excelência uma música voltada para a pista de dança. Certa vez comparei uma produção de funk com uma colagem de Picasso. Um elemento usado numa das colagens vanguardistas de Picasso tem uma função no conjunto da obra, existe um significado para cada elemento se relacionando com os outros. Numa música para dançar nem sempre os elementos precisam se relacionar e fazer um sentido no conjunto daquela obra, e sim precisam ter uma função sensorial ao ouvido e ao corpo de quem a ouve.
As produções de Funk se baseiam na prática do sampler, que são elementos retirados de uma música já preexistente e copiados/colados/misturados com uma nova produção, prática muito utilizada na música eletrônica. Como já disse, esses samplers não precisam necessariamente ganhar significado junto ao conjunto da obra e sim soar bem aos ouvidos e estimular sensorialmente o corpo das pessoas. Muito se diz sobre a pobreza musical do funk carioca, mas olhando para uma pista de dança é fácil reparar que não são necessários melodias e arranjos complexissímos para o público sentir-se envolvido pela música. Num comentário da postagem anterior um cara questionou a qualidade musical desse estilo, dizendo que comparar James Brown com funk carioca seria o mesmo que comparar “vinho com água de esgoto”. Porém percebí que essa pessoa não fez uma análise aprofundada sobre o tema é só se expressou baseando-se numa impressão superficial e talvez influenciada por fatores externos.
Não cabe a mim dizer que o funk carioca é melhor que James Brown ou dizer que ambos estão no mesmo patamar, mas digo que suas canções também se enquadram como música para dançar (por sinal, também muito bem sucedidas), e analisando os seus dois maiores sucessos (I feel good e Sex Machine) nós notamos e reforçamos algumas das mesmas questões que eu citei para o pancadão do Rio. As suas letras são muito simples e de fácil assimilação, e sua melodia não é nada complexa (linha de baixo constante, metais e guitarra trabalhando repetitivamente). Isso nos reforça o argumento de que para o público sentir-se envolvido pela música não são necessários arranjos trabalhosos e detalhes perfeccionistas, basta se alcançar uma sonoridade que agrade aos sentidos do público dançante. Esses meus argumentos podem ser retrucados com comentários do tipo “Ah, então vale fazer qualquer porcaria pra fazer os outros se sacudirem ?”. Qualquer porcaria não, mas uma música simples e descontraída pode suprir as necessidades e expectativas do público, mesmo deixando a desejar em outros aspectos fora da pista de dança.

Como todo produto que não pertence à classe dominante, o funk sofre estigmas e preconceitos já naturalizados na mente das pessoas. Mesmo com a consolidação do funk como expressão dos subúrbios e favelas, a opinião pública continuou a perseguir os funkeiros. Um fato marcante para a formação desse preconceito aconteceu em outubro de 92 quando aconteceu o “arrastão” nas praias do Rio. A polícia, sem identificar os agentes do distúrbio, imediatamente disse “eram os funkeiros”. A mídia usou esse fato para relacionar ainda mais os bailes funk com violência e bandidagem. A favela sempre sofreu preconceitos, e com os funkeiros não foi diferente. Um outro assunto sempre presente é a função social das musicas “marginalizadas”, assim como o funk e o rap. A maior parcela do movimento do funk carioca não tem como prioridade um esclarecimento quanto à função social que sua música tem, diferente do Hip Hop que desde a sua origem foi um movimento de reação aos conflitos sociais e à violência sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade urbana, um movimento que reinvindica um espaço de voz, de discussão e de protesto contra o preconceito, a miséria, a exclusão e etc. É notável que muito da cultura hip hop foi apropriada para outros fins, mas não dá pra negar essa origem militante do estilo.
Porém por sua vez, o funk também tem seu papel de voz da periferia. Mesmo não tendo como objetivo principal e inicial o protesto e a denúncia, muitas de suas letras expõem a realidade do cotidiano vivido nas favelas do Rio e explicitam o que antes não era de conhecimento de parte da sociedade. É interessante o que o Dj Marlboro diz sobre esse assunto: “A sociedade deveria aproveitar as informações que essas músicas estão trazendo de dentro das favelas e criar um mutirão urgente de invasão à comunidade pela sociedade, uma invasão de oportunidades, de perspectiva, de cidadania”. E sobre a apologia ao sexo e à violência encontrada nas letras ele diz: “Tenho que dar um desconto, por compreender o grau de instrução e orientação que faltou a quem escreve. Talvez soubessem se expressar melhor se tivessem tido a oportunidade de uma educação decente. Daí saberiam identificar a linha tênue do limite entre a apologia e o relato”. De uma forma espontânea, os funkeiros abriram os olhos de muitas pessoas em relação à vida nas favelas, e sua função social veio como um reflexo que a sua música causou. Apesar do Funk não ter nascido com essa preocupação militante que o Hip Hop tem, os dois movimentos são a voz do povo da favela e da periferia gritando, alertando, informando e também incomodando quem a escutam de fora. Além de funcionar como denuncia, o funk também funcionou como divulgador do potencial encontrado dentro das comunidades pobres. O Funk, como outros estilos, mostrou novamente como uma expressão oriunda de uma classe mais pobre faz sucesso e tem capacidade de virar evidência entre as classes mais abastadas. Hoje em dia os bailes que antes eram freqüentados pelos próprios moradores da comunidade também atraem o público rico de fora. Temos diversos exemplos de como o som da favela foi apropriado e transformado em som para classe média, exemplos são CDs produzidos por gravadoras mainstream e de patrocinadores como Luciano Huck e Xuxa, e também as regravações de funk como as que foram feitas por Lulu Santos e Roberto Carlos, isso sem falar nos produtores internacionais que já se renderam ao nosso batidão. O funcionamento do sistema fonográfico sempre foi assim, sucesso é igual a lucro e os funkeiros foram reconhecidos como sucesso, então nada mais óbvio do que integra-los ao sistema. Pelo menos assim as pessoas de dentro da favela recebem algum prestígio e reconhecimento.

Apesar das diversas portas abertas, o funk ainda é um estilo marginalizado que sobrevive com muita batalha independente da grande mídia, coisa que muita gente metida a intelectual chama de underground mas ainda insistem em dizer que essa música carioca é lixo da pior espécie.E o mais engraçado é que esse lixo ta tão em evidência que já até invadiu o tão cultuado Tim Festival e outros locais de “gente cabeça”.

P.S: Pra quem não sabe eu sou DJ em Niterói, e em praticamente todos os eventos que eu toco a seqüência de Funk é o auge da noite.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Funk Carioca: O seu batismo.

Hoje em dia ao se falar de Funk o que vem à mente da maioria das pessoas é o ritmo dos diversos "bondes" e Mc’s cariocas, mas na verdade este termo originalmente se refere a outras coisas. Ao se falar da origem do termo FUNK CARIOCA nós acabamos falando também de boa parte da história desse estilo, o "batismo" do Funk está diretamente relacionado com o desenvolvimento e apropriações musicais que originaram o pancadão contemporâneo.

Na década de 70 as festas de black music já eram uma realidade, mas alguns bailes (primeiramente comandados por Big Boy e Ademir Lemos) começaram a se dedicar mais ao som do funk americano, conhecido também como soul music (James Brown, Kool & The Gang, Earth Wind and Fire, Tony Tornado, Tim Maia, Sandra de Sá, etc). Esse bailes, que deixavam o rock e o pop mais de lado, se concentravam em clubes na zona norte do Rio, sem local fixo. O sucesso de público dessas festas, que chegavam a atrair 10.000 pessoas numa noite, despertou interesse de produtores e foi assim que surgiram as primeiras equipes de som. Em meados dos anos 70 já existiam cerca de 300 equipes de som atuando no Rio, entre elas Sound Grand Prix, Furacão 2000, Hollywood, Big Mix, etc.
Nessa época os bailes eram bem diferentes do que os de hoje em dia, eram festas mais de cultura black power e ainda não existia essa cultura de "thuthuca e popozão". Existem várias teorias de como esses bailes começaram a ganhar o formato que conhecemos hoje, a mais óbvia seria que os Djs da primeira leva ficaram velhos e seus substitutos traziam influências diferentes daquelas da soul music mais "clássica", como o Hip Hop e R’n’B. Mas é certo que os bailes só tomaram o rumo para virar o que é hoje na década de 80, com a entrada do estilo Miami Bass no repertório dos Djs, que pode ser considerada uma vertente mais eletrônica do Hip Hop (exemplo: Afrika Bambataa - Planet Rock).

O Miami Bass é um estilo da Florida que tem como características um BPM acelerado e graves bem marcantes. Segundo o Dj Marlboro, "o Miami Bass estorou no Brasil antes mesmo de estourar nos EUA. Uma explicação pra isso pode ser a batida mais grave das baterias eletrônicas, que tem semelhança com o nosso surdo do samba". Outros fatores que contribuiram para o sucesso desse estilo nos bailes cariocas podem ser: o ambiente latino e praiano que o Rio e Miami compartilham, as letras descontraídas e cômicas (diferente do Rap engajado), as vezes de apelo sexual, e o forte potencial dançante de suas melodias e batidas. Esse estilo caiu como uma luva para os produtores e foi super aceito pelo público.
Umas das curiosidades desse período foi a criação dos melôs. Na noite era tocada 100% de música internacional, e como o público não tinha conhecimento da língua inglesa surgiram versões "abrasileiradas" cantadas por cima da música original. Assim também era mais fácil para as pessoas trocarem informações sobre as músicas, pois muita gente ficava constrangida por não saber pronunciar aquele nome em inglês. Alguns exemplos são: "You Talk Too Much" que virou "Taca Tomate", conhecido como melô do tomate, ou "It’s Automatic" que virou o melô do "Thothomere".
Para o início das produções em língua portuguesa foi um pulo, a partir do meio dos anos 90 alguns bailes já tocavam 100% de música nacional. A roupagem de Miami Bass foi preenchida com influências nacionais e virou o Funk que conhecemos hoje.
Mas enfim, como eu disse, falar da história desse estilo é o mesmo que falar de onde vem o nome FUNK. O nosso "Miami Bass abrasileirado" é chamado de Funk pois na transição dos antigos bailes funks (onde se tocava funk americano, soul music) para os "modernos" (que tocam Miami Bass), a nomenclatura não foi trocada, ou seja, as pessoas continuaram dizendo "Estou indo ao baile Funk". Mesmo sem influência direta do Funk americano, o termo foi mantido até hoje para se referir a esse estilo tocado nos bailes e festas do Rio de Janeiro. Você pode falar que James Brown é o pai do Funk americano, mas do Funk carioca ele é no máximo um tio-avô.

Espero ter feito vocês compreenderem um pouco sobre essa confusão que existe entre o Funk de James Brown e o Funk do Mister Catra, um problema de nomenclatura mas que para a multidão dançante não atrapalha em nada, já que festa é festa e o que importa é curtir e dançar. Uma coisa que eu sempre insisto em dizer, independente da qualidade musical do Funk, ele desempenha sua função com maestria, que é não deixar ninguém parado a noite toda. Muita gente ainda descrimina esse estilo carioca, mas é só olhar para as pistas de dança (e hoje em dia também para alguns lugares mainstream da mídia) e ver como o pancadão é bem sucedido. Isso dá assunto para uma próxima postagem ;)