terça-feira, 21 de maio de 2013

Resenha do conto 'O Congresso', do escritor latino-americano Jorge Luis Borges

http://gonzalosp.files.wordpress.com/2010/10/libro_arena.jpgBorges, com toda sua erudição habitual, começa o conto, publicado na coletânea 'O Livro de Areia', construindo um eu-lírico que narra melancolicamente em primeira pessoa sua nostalgia e seu sentimento de desencanto, num tipo de crise de idade. Mas será que o “modesto homem cinza que traça estas linhas”, como o eu-lírico se intitula, poderia ser o próprio Borges?  O modo pessoal como ele descreve tamanha melancolia me fez crer que há um toque de biografia no conto, porém algumas informações evidentes no próprio texto afastam essa ideia: Alejandro Ferri, o personagem, foi jornalista e é natural da província de Santa Fé. Borges nunca exerceu tal profissão e também não veio de nenhuma província, na verdade, Borges passou parte da juventude na Europa, retornando para a Argentina em 1899. E aí encontramos um detalhe curioso, o eu-lírico do conto narra que chegou em Buenos Aires em 1899, justamente o mesmo ano em que o escritor retornou de sua estadia na Europa. Seria uma conexão?
Enfim, autobiográfico ou não, vamos à resenha do conto.

Ferri é um homem que está aparentemente no final da vida, velho e sem paixões, desanimado e insensível, mas que guarda uma lembrança única e vívida: sua participação no Congresso do Mundo. Borges tem alguma fixação com o infinito, uma espécie de megalomania fantástica, e nesse conto não é diferente. O Congresso é uma entidade enigmática, quase secreta, com o propósito de representar todos os homens de todas as nações, abarcando todo o planeta, sendo a plena representação do gênero humano. Proposta, no mínimo, ambiciosa, como o próprio autor evidencia no trecho:

“Twirl, cuja inteligência era lúcida, observou que o Congresso pressupunha um problema de índole filosófica. Planejar uma assembléia que representasse a todos os homens era como fixar o número exato dos arquétipos platônicos, enigma que ocupou durante séculos a perplexidade dos pensadores. Sugeriu que, sem ir mais longe, dom Alejandro Glencoe podia representar os proprietários de gado, mas também os uruguaios e também os grandes precursores e também aos homens de barba vermelha e os que estão sentados em uma poltrona. Nora Erjford era noruega. Representaria às secretárias, às norueguesas ou simplesmente a todas as mulheres belas?” 

Em certa altura do conto, Ferri vai passar dias na fazenda de Dom Alejandro Glencoe, o fundador do Congresso, longe da vida urbana e movimentada. (Na fazenda, o eu-lírico tece alguns comentários racistas sobre os peões de “sangue índio” e que voltaria a tecer sobre o integrante negro do Congresso). Quando voltou para Buenos Aires, foi mandado a Londres para pesquisar e estudar em nome do Congresso e acabou apaixonado por uma estudante de literatura. Nesse trecho, Borges utiliza uma de suas características eruditas mais marcantes, a citação de obras literárias das mais diversas.

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Essa parte da estória tem sentido especial para mim, pois morei em Londres e sei como a cidade britânica é verdadeiramente cosmopolita. Borges escreveu “na áspera fronteira do Brasil, havia-me acossado a nostalgia”, se referindo à temporada na fazenda, “mas não foi assim no vermelho labirinto de Londres, que me deu tantas coisas”. Além da paixão pela estudante, acredito que Ferri, homem cosmopolita e de horizontes globais, se encantou com a riqueza cultural da capital da Inglaterra, com o magnífico British Museum, onde fez suas pesquisas, e com todo aquele turbilhão de acontecimentos pelas ruas de arquitetura vitoriana.

Ao retornar de Londres, Ferri encontra o Congresso em crise, com rixas internas e desistências por parte dos integrantes. O fundador, Dom Alejandro, decide queimar todos os livros reunidos pelos congressistas e faz o seguinte discurso:

“Quatro anos levei pra compreender o que lhes digo agora. A tarefa que empreendemos é tão vasta que abarca, agora sei, o mundo inteiro. Não é uma porção de conversadores que se atordoam nos galpões de uma estância perdida. O Congresso do Mundo começou no primeiro instante do mundo e prosseguirá quando formos pó. Não existe um lugar em que não esteja.” 

Voltando ao início, à crise de idade do eu-lírico, que se considera velho e acabado, o Congresso pode ser uma representação da juventude, do espírito sonhador, ambicioso, presunçoso, utópico. Ferri relembra os tempos de congressista com evidente nostalgia. Ferri sente falta da juventude. E Dom Alejandro, que já era de idade mais avançada na época do Congresso, pode ter perdido esse espírito justamente quando fechou o Congresso. Desistindo de “abarcar todo o mundo” e passando a viver sua vida particular.

Outra interpretação, dessa vez crítica, seria a de que Borges estaria sugerindo a impossibilidade de abarcar algo tão plural como a humanidade. Em tempos de ONU, resoluções de conflitos internacionais e o ainda existente etnocentrismo, o conto pode servir como uma crítica de como os supostos “xerifes” do mundo tentam reduzir tamanha pluralidade em um congresso representativo, mas que na verdade é formado de poucos indivíduos sem a menor chance de representarem todas as nuances do gênero humano.